domingo, 22 de abril de 2012

Acordo Ortográfico - Henrique Monteiro-Expresso


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O Acordo 20 anos depois

Duas décadas depois de concluído, quatro anos depois de aprovado por ampla maioria noParlamento, milhões de euros de investimentos depois, renasce a ofensiva contra o Acordo Ortográfico. Vamos falar de forma diferente? Claro que não! O que há é muita teimosia e algumaignorância.

Henrique Monteiro (expresso.pt)
19:00 Quarta feira, 22 de fevereiro de 2012
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Henrique Monteiro - O Acordo 20 anos depois
Dedicado a Vasco Graça Moura e a todos os opositores do Acordo Ortográfico
A minha adesão pessoal ao Acordo Ortográfico (AO) tem a ver simultaneamente com confiança e humildade. Confio na sabedoria de quem o fez (não na sua infalibilidade) e sou suficientemente humilde para reconhecer que muitos aspetos que dizem respeito à etimologia e à fonética, tais como outros menos relevantes para este caso, me escapam. Além da confiança e respeito por nomes como Lindley Cintra ou António Houaiss, de que não vejo muita gente comungar, mas antes desprezar, dediquei eu próprio algum tempo ao assunto. E, uma vez que faço da escrita a minha profissão há mais de 30 anos, penso ter algo a dizer.
Rodrigues Lapa, que foi um mestre da língua portuguesa, filólogo distinto, sustinha que as mudanças de ortografia eram sempre violentas. Esta asserção é hoje inteiramente justificada pela quantidade de pessoas que apenas se opõem ao Acordo 'porque sim' - sem quaisquer argumentos.
A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um p em ótimo, agora lhe dizerem que afinal esse p (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem o p perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! Mas qual português, Santo Deus (ou melhor diria Sancto Deus?). O português do assucar ou do açúcar? O de Viseu ou Vizeu?
Philosophiapharmacia ou phleugma também terão perdido essa identidade (para filosofia, farmácia e fleuma)? Ora, o facto de o phi grego deixar de se distinguir do na grafia não me parece ter provocado dano ao idioma. Mas há, insistem, o problema do fechamento das vogais. Ou seja, a mania portuguesa (que não brasileira, angolana ou moçambicana) de comer as vogais. Este argumento é o que afirma que passaremos a dizer aspêto em vez de aspéto, uma vez que a retirada do c fecha a vogal. Pode parecer um argumento poderoso, mas não é. Não dizemos Mêlo desde que o apelido deixou de se escrever Mello (Vasconcellos ou Sampayo também se dizem do mesmo modo).
Reparem - e repare o excelente poeta e tradutor, a quem o texto é dedicado - que a forma de acentuar nada ou pouco tem a ver com o modo de escrever, mas sim com o modo de ouvir. Logo ele, que nasceu na Foz do Douro, bastava-lhe andar até à Ribeira para ouvir dizer Puârto e muitas outras coisas que foram morrendo com a voragem unificadora fonética da televisão. No norte dizia-se baca sendo a palavra com v; e o macho da baca era o voi apesar de lá estar umb. Mais estranho: em Lisboa sempre se disse contiúdo apesar do e, ao contrário de Coimbra e Porto onde se dizcontêúdo. Em Lisboa, ôitodezóitovinte e ôito; no Porto, óitodezôito e vinte e óito. E sempre se escreveu da mesma forma... Aliás, segundo a professora Maria Helena da Rocha Pereira, o fechamento das vogais pré-tónicas começou em Portugal em finais do século XVII ou princípios do século XVIII - ainda não havia acordos nenhuns.
Agora, se me perguntarem por que razão em 1911 pae passou a pai e mãi passou a mãe (como até hoje se escreve) não sei dizer, do mesmo modo que me irrita o espetador no acordo atual. Mas a propósito daqueles que juram que 'espetador' não distingue o que assiste a um espetáculo de um picador de gelo, refiro a frase: senti os pelos eriçarem-se pelos braços. E eis que toda a gente compreende onde está o quê. Ainda sobre confusões e fechamentos e aberturas de vogais, vejam a frase: 'Gosto particularmente do teu gosto' - quando a leem dizem (pelo menos os cultos, como o presidente do CCB) gósto e gôsto instintivamente. Como em 'Faz força e força aquela porta' sabem que primeiro é fôrça e depois fórça.
Permitam-me, ainda, referir que, durante a minha vida, sòzinho ou sòmente perderam o acento. Pois bem, nunca notei qualquer inflexão (para suzinho ou sumente) no modo de pronunciar aquelas e muitas outras palavras (advérbios de modo e diminutivos) a que aconteceu o mesmo.
Há ainda os que afirmam não gostar do acordo por razões estéticas. É aceitável. Mas a ortografia, sendo uma representação, não pode agradar a todos, e menos ainda reproduzir a pluralidade (e até pessoalidade) de pronúncias e modos de dizer. Exigi-lo seria como pedir a um pintor que pintasse o céu não como ele o vê, mas como cada um de nós, pessoalmente, o vê. Tarefa impossível.
Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de palavras. E fá-lo, pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras latitudes. Cedemos? Não sei, nem me importa. Não quero uma língua para me distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem diz Brasil, que tem 200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Timor.
Respeito o argumento de que a língua deve evoluir por ela, sem intervenção governamental. Creio, no entanto, que deve haver uma única e determinada ortografia nos manuais escolares e nos documentos. Ainda que cada escritor (como cada editora ou jornal) prefira o seu modo de escrever (Pessoa nunca respeitou o acordo de 1911), a ortografia escolar e oficial não pode ser espontânea nem à vontade do freguês. Acrescento que, curiosamente, nenhum de nós (ou quase) lê Pessoa (nem Eça, nem Camilo, nem sequer Aquilino ou Nemésio) na ortografia que os autores escolheram, assim como, apesar de usarmos a língua de Camões, há muito que não grafamos as palavras como ele ("Armas & os barões" ou "Occidental praya"). Quero com isto dizer que um jornal, uma editora, um escritor ou um Centro Cultural de Belém que não adira ao AO, ver-se-á, a breve prazo, a braços com uma escrita anacrónica... E um dia, tal como Pessoa ou Camões, será lido com a ortografia que então estiver em vigor.
Eis porque fui um dos entusiastas, na altura como diretor do Expresso, da utilização do AO nas publicações do Grupo Impresa. Eis porque não aceito que uma lei discutida durante mais de 20 anos seja constantemente colocada em causa. Ou que os opositores do AO esqueçam sistematicamente que a forma como escrevem resulta também de um AO imposto por lei.
Não vale a pena pensarmos que cada geração tem a pureza da grafia. O que pensar de Marco Túlio Tiro que, para poder transcrever os discursos de Cícero, abreviou diversas palavras com sinalética que até hoje usamos (etc., v.g., e.g.). Talvez o mesmo que muitos pensam das abreviaturas feitas pelos jovens nos telemóveis e redes sociais. E, no entanto, é a grafia que tem de estar ao serviço da comunicação - não o contrário.
Acirrar ânimos, insultar adversários, fazer juras solenes em torno de uma simples representação do nosso idioma faz-me lembrar aquele padre tio de Brás Cubas que o genial Machado de Assis (e não por acaso cito um autor brasileiro que devia ser mais lido em Portugal) descreve assim: "Não era homem que visse a parte substancial da igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia do que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos". (E aqui, a palavra infração segue o modo como ele a escreveu... em 1881).
Defender que o fim das consoantes mudas altera o modo de acentuar as palavras é desconhecer que dizemos as palavras tal e qual as ouvimos dizer e não como as vemos grafadas. Só assim se explica a forma diferente de dizer inúmeras palavras, (como conteúdo, dezoito) a troca dos vês pelos bês ou a diferença entre lixo e fixo

Não lemos os autores portugueses com a ortografia que eles escolheram. De Camões a Pessoa, de Bernardim Ribeiro a Eça, todos são vulgarmente lidos na ortografia atualmente em vigor (e que vem essencialmente de 1911). A guerra em torno do Acordo é inútil, anacrónica e, sobretudo, nada tem a ver com uma mítica pureza da língua que é algo que nunca existiu

Texto publicado na revista Atual da edição impressa do Expresso de 18 de fevereiro de 2012
Ler mais: http://expresso.sapo.pt/o-acordo-20-anos-depois=f706306#ixzz1slCPlqYA

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www.webartigos.com/artigos/surgimento-e-desenvolvimento-da-lingua-portuguesa/59864/ 

7 comentários:

  1. Realmente o assunto do acordo dá para tudo, felizes, são os que dizendo vulgaridades e imbecilidades, são remunerados para tal,...sim,...??? Ó monteiro,...??? Era preciso não te conhecer, para esperar algo mais,...

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  2. Se este senhor, que se diz informado, não omitisse a forma como este aborto hortográfico foi discutido e aprovado, seria intelectualmente mais honesto. Não é verdade que os pareceres tácnico científicos foram todos negativos, à excepção do parecer do autor do acordo? Não é verdade que este acordo é uma decisão apenas política, baseada numa espécie de promessa que não tem nada de evidente (afinal em vez de aproximar, o que este acordo tem feito é afastar, gerando uma aversão ao português do Brasil, que susbstitui o português de Portugal).
    E afinal que argumentos utiliza H. M.? Veneração e respeitinho pelos grandes mestres Cintra e Houaiss? Se eles dizem, é porque deve estar bem, mesmo que a gente não entenda e pareça absurdo. Excelente argumento!

    Há mais de vinte anos que se vem alertanto contra a enormidade desta aberração, o que acontece é que como em boa parte das leis aprovadas em Portugal, não há verdadeiramente nenhum debate público, e a arrogância do poder político e legislativo impõe-se porque sim. As formas de contrariar a iniquidade são poucas e difícieis.
    Mas há uma solução, primeiro boicotar as edições e jornais que adiram ao AO, a começãr pelo Expresso (há muitos jornais que mantêm a norma padrão). Depois, evidentemente, desobedecer a esta lei estúpida, que ninguém pediu, da qual não há nenhuma necessidade, que afasta o Português europeu da sua raiz latina e descaracteriza a nossa língua.
    É preciso ser verdadeirmente ignorante para dizer que a ortografia é uma mera convenção. É parte integrante da palavra na sua dimensão identitária, que não pertence ao EStado, nem ao poder político, e muito menos às eminências especialistas que se julgam donos da língua.

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  3. Não me parece que isto faça muito sentido, querer ir buscar português medieval ou latim à mistura. Não é disso que se trata. O acordo ortográfico é uma coisa muito bonita para não dizer outra coisa. Esqueceram-se é que o vocabulário é diferente por exemplo no Brasil. "Esse cara" começa a aparecer em traduções para "português".
    Se não vivêssemos num pais complexado dominado por cretinos e canalhas isto não aconteceria.......

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  4. (Dedicado a H. Monteiro)
    Desilude-me a sua demagógica introdução ao assunto.
    Desilude-me a sua incoerência quando, depois do que disse, ainda acentua "há", ou "língua", ou "não", ou "próprio", ou...
    Desilude-me a sua falta de rumos - argumentativo, estrutural ou mental.
    Que deserto de ideias.
    Sou capaz de ler(ouvir) toda a espécie de atropelos ortográficos e percebo-os e deduzo-os e não vou inquirir ninguém sobre como escreve aquilo que diz.
    Já se me torna difícil que um alguém que tenha "30 anos" de escriba se queira justificar como aqui o fez, e, num mesmo texto, depois de "dizer" uma coisa, "fazer" outra.
    Para mim o senhor já passou a fazer parte daqueles que escrevam como escreverem, percebê-lo-ei sempre, tal como a minha empregada doméstica, ou a minha sogra que tem a terceira classe de 1940 e as mãos deformadas pela artrite.

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  5. Eu sempre irei falar e escrever a minha língua que é a Portuguesa ou o Português, da mesma maneira que sempre escrevi depois do o aprender a fazer

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    1. Da mesma maneira espera que seja sempre menina e nunca chegue a mulher.

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  6. Boa tarde a todos.

    - Primeiro, o acordo é político, não ortográfico:
    se fosse ortográfico, o argumento (de gente mentirosa e desonesta) da "simplificação da ortografia" faria cair os "h" e "u" mudos todos de uma vez: qe, qero, omem, Enrique, onesto, umano, etc, etc etc. Não o faz, é só uma aproximação à grafia do Brasil.

    - Os argumentos de aproximação da grafia à oralidade - que vi serem apresentados por um académico - são só para os estúpidos que o defendem: quantas oralidades há em Português?

    - O acordo é inútil:
    1 - a língua está em constante evolução, e evolui tanto mais depressa quanto mais diversas forem as culturas que as falam, e também mais ignorantes. Com a dimensao do Brasil, temos de fazer um "acordo" de 20 em 20 anos.
    2 - mesmo que toda a gente aderisse e cumprisse como está, de nada serve, porque as línguas faladas em Portugal e no Brasil são diferentes: palavras, expressões, até a gramática está a divergir. Não será a ortografia que aproximará duas culturas diferentes.

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